Uma lição bem simples de um filme meio complexo e que apresenta dois mundos muito exóticos.
O céu da língua, a linguística transformada em arte
"O texto primoroso, a comicidade refinada, o próprio desempenho de Duvivier no palco, a celebração da nossa língua"
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Redação Dever de Classe. Atualização: 24/05/2025, às 19:18

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A língua no céu: com humor e leveza, peça transforma linguística em arte
Por Henrique Braga, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP
O céu da língua, obra teatral com texto de Gregório Duvivier e direção de Luciana Paes, é um desses acontecimentos artísticos
que serão por muito tempo lembrados. Os motivos são muitos: o texto primoroso, a comicidade refinada, o próprio desempenho de Duvivier no palco, a celebração da nossa língua etc. Entre tantos assuntos possíveis, destacamos um que é caro a esta dupla de articulistas há um bom tempo: como levar nosso entusiasmo por questões de linguagem para um público mais amplo? A peça, digamos sem rodeios, realiza isso com maestria.
Divulgação científica no teatro?
Desde o já longínquo ano de 2011, estes que vos escrevem vêm se dedicando a um gênero conhecido como "divulgação científica". Na saudosa Revista Língua Portuguesa, tivemos a coluna "Academia", em que publicávamos artigos destinados a popularizar resultados de pesquisas acadêmicas. Estes artigos que ora produzimos honrosamente para o Jornal da USP são legatários daquela primeira iniciativa, empenhada em aproximar as reflexões sobre linguagem de um público mais amplo.
Tanto lá quanto cá, por vezes, lidamos com a seguinte questão: como tocar de fato o público leigo, indo além da nossa turma de aficionados pelo idioma? Esse não é o único, mas é nosso maior desafio. E, no teatro, O céu da língua o transpõe com engenho e sensibilidade.
A peça é certamente uma das poucas obras dramatúrgicas (quiçá a única) em cujo livro se apresentam "referências bibliográficas" com obras da linguística contemporânea – como Assim nasceu uma língua, do português Fernando Venâncio, e Latim em pó, de Caetano Galindo (que resenhamos na edição 144 da Revista USP). E as referências não são em vão.
Elas não estão ali como mero adorno acadêmico, mas se fazem ouvir no próprio texto dramático. Quando o ator, falando sobre a origem de línguas românicas, afirma que o português teria se originado de uma "preguiça consonantal", identificamos ecos do texto de Venâncio: em seu livro, o autor discorre exaustivamente sobre a hipótese de que a queda de "l" e "n" intervocálicos seria uma importante pista das origens galegas da língua portuguesa (como ocorre em "dolor > dor" ou "moneda > moeda", exemplos citados pelo dramaturgo e pelo linguista).
O que torna O céu da língua cativante, porém, não são, naturalmente, as referências, por mais que elas lhe deem sustentação. A beleza do texto decorre do olhar construído sobre os fenômenos da linguagem – seja a mudança linguística, seja a métrica decassílaba. A peça consegue encantar o público ao mostrar que a linguagem é, entre tantas outras coisas, reflexo da criatividade humana – ideia cara, aliás, a linguistas como Carlos Franchi, para quem o sujeito se constitui na e pela linguagem.
A visão positiva e o ato criador
Gregório Duvivier é graduado em Letras pela PUC-RJ, importante instituição que, inequivocamente, contribuiu para que o ator aderisse a uma visão positiva sobre o idioma nacional. Tal concepção implica analisar os fenômenos linguísticos de modo científico, buscando compreender (e, por que não, admirar) as diferentes variantes da língua.
Sem negar a óbvia relevância da norma-padrão, uma visão mais ampla e positiva reconhece que muito do que hoje consideramos forma "culta" já foi, em algum momento, tido como erro ou inovação popular – afinal, as próprias línguas românicas, ou "neolatinas", se originam do latim vulgar, ainda que tradição escrita e elites letradas tenham preservado certos traços do latim clássico. Assim, livre das amarras normativistas, que transformaram gerações de professores de língua em meros fiscais dos ditos "bons usos", o texto da peça lança luz sobre a beleza dos atos criadores que subjazem à língua e à própria linguagem.
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Gregório Duvivier em O Céu da Língua / foto: Raquel Pellicano/reprodução.
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Um exemplo: "Na origem de todas as palavras tinha um poeta. A primeira pessoa que falou em céu da boca era um poeta. A segunda era um dentista". Essa passagem é apenas uma entre tantas em que a comicidade se torna recurso para louvar a potência criadora na linguagem. Termos como "batata da perna" e "maçã do rosto" são evocados para tratar do que George Lakoff identificou como fundante no desenvolvimento das línguas, a nossa capacidade de construir metáforas – as quais, quando se tornam parte dos usos comuns, deixam de ser reconhecidas como criações metafóricas pelo falante comum. É justamente a esse apagamento da criação poética original que Duvivier se refere ao afirmar que "todo dicionário é um cemitério de metáforas".
Um apelo aos linguistas: não vejam a peça
Neste maio de 2025, encerra-se a temporada paulista (com ingressos praticamente esgotados) e, em junho, a peça estará em Portugal. Posteriormente, é difícil imaginar que não haja um retorno a palcos brasileiros. Contando com essa possibilidade, fazemos um apelo aos colegas linguistas: não vão ao teatro.
Calma, explicamos. Recorrendo à literatura, ao cancioneiro popular, à história das línguas românicas e até a hipóteses sobre o surgimento da linguagem, O céu da língua consegue, com humor e leveza, mostrar ao grande público por que estudar o mundo das Letras tanto nos fascina. Por isso mesmo, e por amor à ampla circulação do conhecimento linguístico fora dos muros da universidade, sugerimos: cedam lugares. Deixem que os ingressos cheguem a quem mais precisa descobrir que a linguagem pode, sim, ser um espetáculo.
Fonte: Jornal da USP
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