Nova York é a grande Babilônia do século XX, diz Mautner, em texto sobre Gil no Pasquim

25/04/2025

O escrito, cheio de belas imagens e reflexões, é de 1971, quando Jorge Mautner e Gilberto Gil estavam no exterior e o jornal ousava desafiar o período mais duro da ditadura militar brasileira

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Por Landim Neto, editor do site. Atualização: 25/04/2025, às 16:59

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unte em um mesmo jornal Ziraldo, Millôr, Jaguar, Sérgio Cabral (pai) e chame também figuras como Jorge Mautner para escrever. Não poderia dar em outra coisa a não ser no Pasquim. 

Criado em 1969, início do período mais sangrento da ditadura militar brasileira (Médici era o presidente), o jornal se tornou um dos mais importantes braços (e pernas e falas e cabeças...) de todos os que se opunham ao regime de terror. Semanal, era uma metralhadora retórica contra os milicos e civis que se juntaram para interromper a democracia, em particular a arte, em nosso país. Joia rara.

Na edição 122 (2 a 8/11/1971), Jorge Mautner publicou no periódico um texto belíssimo sobre Gilberto Gil, então no exílio. O escrito é repleto de imagens, como a que escolhi para dar título a esta postagem. A gente lê e não cansa. E quando acaba, vem a vontade de que fosse mais... Confira, a seguir...


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Gilberto Gil. Foto/reprodução


"Gilberto Gil na Babilônia"

Jorge Mautner

"Gilberto Gil andando no Harlem indo para o Apollo Theater assistir soul music, visões do Oriente em pleno Harlem, cabelos afros e cafonismo geral. Depois Gil cantando no Folk City, onde Bob Dylan foi descoberto, lá no Village. Gil tirando um som com Airto Moreira (que foi percussionista do Miles Davis e que tem dois LPs gravados e lançados aqui em Nova York com Flora, a sua mulher) num apartamento ao lado do Central Park. Mais uma vez no Village, Gil cantando como artista convidado no 'Village Vanguard', famoso lugar de jazz onde costumam tocar Charles Mingus, Thelonius Monk, João Gilberto. Gil cantando numa missa a 'Procissão', comungando domingo de manhã, sendo aplaudido em pé pelos fiéis da igreja na rua 46 West, e Gil emocionado chorando. Finalmente Gil cantando durante duas semanas a partir das nove horas da noite num lugar mágico criado por Hélio Oiticica que usou todo seu poder de feiticeiro para criar um ambiente infernal.

Eu entrei em delírio poético porque a música de Gil me arrastou para isto. Nova York me arrastou para isto, o lugar mágico que Hélio Oiticica criou me arrastou para isto. Acho que esta é a mensagem da música de Gil, a beleza do desconhecido, boa sorte, representante da Bahia em tom universal.
Jorge Mautner/Foto/reprodução
Jorge Mautner/Foto/reprodução

Gil apresenta seu show regular mergulhado num ambiente onde luzes vermelhas, amarelas e roxas se acendem e apagam como sóis e estrelas de Galáxias desconhecidas. Às vezes o lugar parece um sítio pré-histórico, outras quando a luz fica branca e brilha em cima do cascalho, parece que o lugar é uma praia baiana cintilando fosforescências, quando Gil canta uma canção de Jimi Hendrix o lugar fica eletrônico, quando Gil canta 'Aquele Abraço' o lugar irradia carnaval.

O público novaiorquino fica maravilhado, fascinado, porque de repente em Manhattan, onde a barra é pesada, pesadíssima e terrível, surge uma pessoa afirmando a alegria sem ilusões, uma serenidade com movimento, movimento de ginga, dança-agilidade, coisa de Cosme e Damião.

Os brasileiros que vão assistir ao show vão reencontrar o seu poético nacional, vão ver ali no palco daquela igreja tornada em teatro, refletida como num espelho brilhante, aquilo que a alma brasileira tem de melhor, a ilusão e o jogo, e agilidade e o amor dadivoso, generoso, os cantos transformados de obás e ogês, gritos-espasmos, carnavais e candomblés, e também uma consciência cósmica.

O que mais impressiona em Gil é sua consciência cósmica. Numa conversa de toda noite num quarto do hotel Chelsea, eu, Ruth e Gil, conversamos sobre as coisas fundamentais. Do filme 2001 à descoberta do átomo do tempo, a visão aguda do Gil em relação à sua música, os novos horizontes a que sua linguagem anseia, o novo mundo em que ele mergulha e daonde ele traz o cisco das estrelas brilhantes que encontrou, porque trazer as estrelas não dá.

Por isto ele adorou Nova York, a eletricidade fermentando, a cidade que Ezra Pound descreveu como tendo obrigado a descer para a terra as estrelas do céu. Gil caminhando pela Bleker Street (rua citada numa canção de Bob Dylan) e comunicando-se através de vibrações sorridentes com todos os freaks, loucos, hips e hippies de todos os matizes. Caminhando como um príncipe africano, sem ressentimentos e com um orgulho simples, mostrando a fotografia de seu filho Pedrinho com um ano de idade, que fica pegando na guitarra do pai, que fica muitos momentos de sua joveníssima vida dançando e cantando porque vive cercado de som. O mundo de Gil é cercado de som por todos os lados como uma auréola azul. Gil caminha como um samurai, um iluminado, e entra no restaurante macrobiótico e me faz uma preleção sobre o muti, chá preparado com muitas ervas. Depois fala da missão dele aceitar a música como um trabalho, o ego chutado para longe, à procura do novo caminho, o novo som que tem que nascer de um trabalho em equipe, um conjunto, trabalho descentralizado. Afirmação constante da vida.

Nova York é a cidade expressionista onde a presença da morte é tão forte como a da vida. Gil está à vontade neste mundo de tão nítidas contradições. O Empire State que parece ter saído de um filme de Andy Wharol, merece um sorriso de reconhecimento da boca de Gil, mistura de ironia antiimperial e simpatia ante o velho e o conhecido monumento. Guilherme Araújo, agente e amigo, falando para Ruth sobre a importância de Carmem Miranda para o mundo hip contemporâneo.

Nova York pulula e fervilha como sempre em êxtases, um milhão de coisas acontecendo, as mais variadas de todas as nações, todas as tribos, desfiles, filmes, jazz, danças, soul, sons, parques cheios de gente, peças de teatro, happenings, gente fervilhando em cima e dentro de estruturas de ferro da grande Babilônia.

Nova York é a grande Babilônia do século XX, onde todos os êxtases são permitidos. Aqui é o lugar em que mais se permite ao homem curtir sua loucura. Sartre, Bretch, Pasolini, Garcia Lorca e milhões de outros freaks, apaixonados por este inferno de poluição, veneno e eletricidade contínua, onde a condição humana aparece sem disfarces, sem mediações, atenuantes, onde ele é obrigado a assumir-se brutalmente como ele é, o amor e o ódio diretos, cruéis, nítidos, agudos, assumidos até à loucura total. A essência do radicalismo, tudo aqui é radical. E Gil sentiu-se à vontade, como uma eletricidade dentro da eletricidade, porque afinal de contas fazia muito tempo que ele não sentia nem vivia fervilhamento igual, há muito tempo sem ter pisado o chão da América.

E eu me lembro da frase que o diretor de teatro José Celso Martinez Correa exclamou quando fascinado ouvia um soul music no Lower East Side: -"Mas, Mautner, isto aqui é o terceiro mundo!'

Não apenas o terceiro mundo, mas também o quarto mundo, com muitas pessoas vivendo já uma outra dimensão. Gilberto Gil presta atenção em tudo com tranquilidade de quem não está prestando. Olha com curiosidade para o subway (metrô) que é tão mais barulhento que em Londres, e aposto como está observando o ruído do subway novaiorquino para transformar em música futura.

Gil no show canta uma música nova de incrível beleza e sugestão de viagem para o Oriente onde está a magia e o desconhecido. Num trecho ele diz: 'Considere, rapaz, a possibilidade de ir pro Japão, num cargueiro do Loyde lavando o porão...'

E a impressão é a de que Gil já foi a este oriente, ou que está indo, num cargueiro do Loyde, lavando o porão, tocando violão, tirando um som, tanto faz, de qualquer maneira ele já foi, está indo e irá cada vez mais para o oriente, para este Oriente do Oriente que Fernando Pessoa falava, e que é a moradia da imaginação, do delírio da grande noite cósmica daonde ele retorna com ciscos de estrelas, da fantasia soberana com a loucura, onde todos os êxtases são além das fronteiras, onde a beleza é sempre reencontrada sob forma diferente.

Eu entrei em delírio poético porque a música de Gil me arrastou para isto. Nova York me arrastou para isto, o lugar mágico que Hélio Oiticica criou me arrastou para isto. Acho que esta é a mensagem da música de Gil, a beleza do desconhecido, boa sorte, representante da Bahia em tom universal.

Último take: Gil tocando e cantando num parque do Village, com crianças de cabelos compridos como anjos brincando ao redor, muitas folhas no chão de outono, um porto-riquenho e um preto do Harlem com cabelo afro dançando ao som de Gil, Nova York, 16 de outubro de 1971."


Texto de Mautner sobre Gil é sugestão de leitora do Dever de Classe




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