Esse arranjo institucional, que implica na necessidade de fazer amplas alianças para governar, e ser garantia da governabilidade é uma das principais características de todos os governos que se sucederam à ditadura (1964-1985), ou seja, a formação de uma base de apoio parlamentar no Congresso Nacional e não se ter, como já ocorreu, uma paralisia decisória (embates entre o Executivo e o Legislativo) que pode ter entre suas consequências, um golpe de Estado, como ocorreu em 1964 (no caso, associado a outros fatores, que resultou em 21 anos de ditadura).
O cientista político Sérgio Abranches, em um artigo publicado em 1988, no início desse processo pós-ditadura, usou o termo presidencialismo de coalizão (Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34) e que continuou nos governos seguintes (desde 1945, com o fim da ditadura do Estado Novo, com exceção do período ditatorial (1964-1985), os partidos dos presidentes eleitos são minorias no Congresso Nacional e dependem de coalizões para governar, de José Sarney (1985-1990) ao terceiro mandato de Lula (2023-2026).
E quem tentou fazer diferente, não conseguiu, como Bolsonaro, que na campanha eleitoral de 2018 usou como uma de suas estratégias, com a erosão da credibilidade do Congresso Nacional (e dos políticos em geral) se apresentar como "alguém de fora do sistema" (ele que exercia o mandato desde 1991 e foi filiado ao PDC, PPR, PPB, PP, PTB, PFL, PSC, PSL e agora no PL) e a ''recusa" de governar de acordo com o modelo institucional vigente que, segundo ele, tinha sido sempre constituído na base do "toma lá, dá cá", considerado como espúrio, com suas inevitáveis práticas de clientelismo e corrupção.
Como se tratava apenas de retórica, não conseguiu acabar nem como as práticas de clientelismo e muito menos com a corrupção. Houve uma tentativa inicial de governar sem uma base parlamentar sólida no Congresso Nacional, contando apenas com o apoio dos partidos que haviam feito parte da coligação vitoriosa e, ao se recusar a negociar com os parlamentares e partidos, levou ao que Sergio Abranches chamou de "protagonismo retaliatório do parlamento", e que em confronto com instituições e práticas que garantiram a governabilidade pós ditadura no qual "o presidente seguia no arriscado caminho limítrofe ao autoritarismo" e, como se constatou, não durou muito tempo e o velho padrão, com o chamado Centrão à frente, foi reconstituído e com um poder ampliado, com o controle do orçamento federal (orçamento secreto etc.).
O fato é que esse modelo, por ser baseado em negociações com vários partidos, com demandas por verbas, cargos etc., em troca de apoio político, se por um lado garante as condições para governabilidade, por outro tem seus custos, levando muitas vezes ao presidente da República se tornar refém dessa "base aliada" e quando ocorre uma crise, como a saída desses partidos, o impeachment pode ser uma de suas consequências, como aconteceu em 1992 com Fernando Collor e em 2016 com Dilma Rousseff.
Agora, no terceiro ano de mandato, Lula tem um enorme desafio para garantir a governabilidade e aprovar reformas estruturais, em meio a um Congresso no qual é minoria. No momento, as dificuldades de se aprovar projetos como de regulamentação da reforma tributária e a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil.
E uma questão mais ampla a ser respondida: com uma base de apoio tão ampla e diversa, com partidos sem afinidades programáticas e políticas, é possível dar continuidade ao processo de reconstrução do país, depois do legado desastroso (em todas as áreas) da gestão anterior?
A continuidade desse arranjo institucional coloca um aspecto relevante quando se pensa na formação de uma base do novo governo Lula, que é o fato do Brasil ter um dos parlamentos mais fragmentados do mundo. Desde a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, são muitos partidos que integram o Congresso Nacional. Em 1990 eram 19 partidos, 1994 passou para 21 , em 1998, diminuiu para 20, em 2002, para 19, em 2006, aumentou para 21, em 2010, para 22, em 2014 para 28, em 2018 para 30 e em 2022, 23 partidos, considerando as federações (PT/PV/PC do B) e Federação PSDB/Cidadania.
Hoje, o que se pode considerar como base fiel do governo Lula são os parlamentares dos partidos: PT, PSB, PCdo B e Psol, que somam cerca de 130 dos 513 deputados. Os partidos do Centrão tem 2/4 da Câmara dos Deputados, em torno de 250 deputados e seus aliados, a direita e extrema direita, cerca de ¼ , ou seja, a maioria do Congresso contra o governo e isso explica o esforço de Lula para tentar compor maioria, fazendo o que se pode fazer: concessões.
Para aprovar um Projeto de Lei, por exemplo, são necessários 257 votos e para uma PEC 308 na Câmara (em dois turnos de votação) e 49 no senador (idem).
O desafio de Lua é como reverter esse cenário adverso, que inclui a perda de popularidade e entre seus objetivos será o de incluir na coalizão o Centrão. A que custo?
No dia 20 de fevereiro de 2025, durante uma reunião ministerial, Lula comentou a relação do governo com o Congresso e disse "Eu quero conversar com vocês sobre os partidos que estão alinhados conosco. Temos vários partidos, eu quero que esses partidos continuem juntos, mas estamos chegando no processo eleitoral e a gente não sabe se os partidos que vocês representam querem continuar trabalhando conosco ou não".
No Brasil, a Constituição de 1988 garante ao presidente da República um expressivo poder de agenda, como a iniciativa legislativa preferencial, a determinação da tramitação em urgência de seus projetos, a exclusividade de iniciativa em matérias orçamentárias, e ainda legislar por decretos e medidas provisórias. Mas, contar com o apoio do Congresso Nacional é fundamental.
Quem não fez isso, como Bolsonaro no início, teve consequências, como várias derrotas em votações de seu interesse, como o cancelamento dos decretos sobre posse e porte de armas, a devolução pelo presidente do Senado de uma Medida Provisória pela qual se pretendia restabelecer a transferência da FUNAI e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura (que já havia sido rejeitada pelo Congresso em maio de 2019), entre outros.
Compor maioria no Congresso não é apenas distribuir verbas e cargos a aliados: exige negociações e habilidade política. As concessões são inevitáveis, mas com o risco de ficar refém do parlamento, como ocorreu com o governo (golpista) de Michel Temer, que se livrou, por duas vezes, da abertura de um processo de impeachment justamente por ter sabido compor uma maioria, assim como Bolsonaro, que teve o apoio não apenas do Procurador-Geral da República, um aliado importante, como no Congresso Nacional, com os partidos que integravam o Centrão e especialmente na presidência da Câmara dos Deputados, com Arthur Lira e os mais de 100 pedidos de impeachment que sequer foram analisados.
Para manter uma coalizão é preciso ceder, ou seja, o presidente tem que ter não apenas a disposição como a capacidade de formar uma coalizão consistente, de construir uma agenda, respeitando as diferenças e pluralidade de interesses e ao fazer isso, tem de necessariamente compartilhar com o Congresso Nacional "parte dos bônus decorrentes desse poder" como diz Abranches.
E Lula já mostrou sua capacidade de articulação (e conciliação) e agora enfrenta resistência no Congresso Nacional, onde não tem maioria. E se ainda é cedo para especulações sobre as composições de partidos para as eleições do próximo ano, as articulações devem anteceder, agir antes, desde que o apoio dos partidos não sejam apenas retórica, mas um compromisso com e dos partidos. Como fazer isso a não ser cedendo às legendas mais espaço no governo? Mas será suficiente para garantir a reeleição de Lula?
Na impossibilidade de se constituir no país um novo arranjo institucional que não seja o presidencialismo de coalizão, enquanto durar, com este ou outro nome, a necessidade de constituir maioria permanecerá, com os problemas inerentes a esse processo, que continua sendo um grande desafio não apenas para o governo Lula, como para qualquer governo.