O ódio à democracia e suas consequências
>> O livro de Jacques Rancière ajuda a refletir sobre as razões pelas quais o ódio à democracia é cultivado
>> O livro de Jacques Rancière ajuda a refletir sobre as razões pelas quais o ódio à democracia é cultivado
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O tema do ódio à democracia foi objeto de reflexão do filósofo argelino radicado na França, Jacques Rancière, no livro O ódio à democracia. Publicado em 2004 na França e traduzido no Brasil em 2014 (Editora Boitempo), trata-se, como diz o filósofo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, de um livro que "à luz dos clássicos como da experiência francesa e mundial, continua um trabalho sempre renovado, jamais concluso, de afiar o gume da democracia".
Em relação à publicação no Brasil, esta ocorreu em um contexto de ameaças à democracia, de crescimento da extrema direita e do fundamentalismo religioso. Foi um ano em que a direita quase venceu a eleição presidencial (Dilma Rousseff x Aécio Neves — este, tão seguro de que havia vencido, contestou sem sucesso o resultado eleitoral). Esse crescimento da direita nas eleições presidenciais, e nos parlamentos de maneira geral, também ocorreu em outros países.
No caso do Brasil, um aspecto relevante - que se repetiria em outras eleições - é o papel central dos discursos de ódio, especialmente contra o PT e seus dirigentes. Esse discurso continuou sendo cultivado, em particular nas redes sociais, com o apoio da mídia hegemônica, e ajudou a criar o cenário para a vitória eleitoral da extrema direita em 2018.
O livro de Rancière ajuda a refletir sobre as razões pelas quais o ódio à democracia é cultivado. Ele é composto de quatro capítulos: Da democracia vitoriosa à democracia criminosa; A política ou o pastor perdido; Democracia, República, Representação; e As razões do ódio.
O autor procura mostrar que a essência da democracia é a pressuposição da igualdade e que o ódio à democracia não é um fenômeno recente: acompanha-a desde seus primórdios na Grécia antiga. Ou seja, o ódio à democracia é tão velho quanto a própria democracia grega, "nascida de um insulto ao governo legítimo das multidões que viam seu horizonte se estreitando; o ódio expressa-se na abominação aos aristocratas destinados por nascimento e ao governo das multidões, o governo de qualquer um".
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Ao se referir à democracia grega, ele mostra que, para a escolha de seus dirigentes, utilizava-se o sorteio, o que tornava o ato de governar acessível a qualquer cidadão da polis. Esse princípio deixou de existir e foi substituído pelo princípio da representação, uma invenção moderna.
O cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Luis Felipe Miguel publicou, na revista Lua Nova: Revista de Cultura e Política, o artigo Sorteios e representação democrática (n. 50, 2000), no qual analisa as "diferentes propostas de reintrodução da escolha por sorteio como forma de preencher funções políticas". Ele afirma que, com a introdução do sorteio, "a seleção aleatória de legisladores ou governantes reduziria o impacto do poder econômico, permitiria uma representação mais fidedigna de grupos minoritários ou desprovidos de recursos políticos e promoveria o rodízio entre governantes e governados, impedindo a cristalização de uma elite oligárquica".
Segundo o autor, trata-se do ressurgimento da ideia de sorteio, uma vez que a seleção aleatória dos magistrados era regra corrente na democracia grega e permaneceu nas cidades-Estado republicanas italianas até o Renascimento (séculos XIV ao XVII). Longe de ser uma característica marginal, "era um dos traços definidores da democracia tal como entendida desde os filósofos gregos até, pelo menos, o século XVIII".
No entanto, ele reconhece que, "para sociedades tão extensas, populosas, complexas e plurais como as de hoje, o sorteio de governantes e legisladores também não parece ser a saída. Mas, ao menos, as propostas para sua adoção sinalizam com clareza os principais defeitos da organização representativa atual, assinalando, com correção, a desconcentração do capital político como o desafio fundamental a ser superado. Frágeis como sejam, elas são tentativas de repensar a organização da democracia, em vez de optarem pela solução - mais fácil e palatável - de promover a acomodação".
O fato é que isso sequer tem sido discutido, diante da impossibilidade de retorno a formas de democracia direta. O que se tornou hegemônico foi o sistema representativo, a democracia representativa. Nesse sentido, afirma Rancière, ela nada mais é do que um regime de funcionamento do Estado com base parlamentar-constitucional, mas fundamentado no privilégio das elites, que temem "o governo da multidão e é quem dela se beneficia".
Em síntese, nesse sistema governa-se em nome do povo, mas sem sua participação direta. Para ele, "a representação foi um sistema inventado para assegurar aos privilegiados os mais altos graus de representatividade".
Ao analisar duas importantes revoluções, a Francesa e a Norte-Americana, Rancière mostra que suas principais lideranças sabiam o que faziam: falavam em nome do povo, mas o excluíam das decisões. "Os Pais Fundadores e muitos dos seus seguidores franceses viam nela justamente o meio de a elite exercer de fato, em nome do povo, o poder que ela é obrigada a reconhecer a ele, mas que ele não saberia exercer sem arruinar o próprio princípio do governo".
Ao analisar o sufrágio universal - considerado como uma conquista, e não apenas uma concessão das classes dominantes - o autor afirma que ele não foi decorrência natural da democracia: "A história sangrenta das lutas pela reforma eleitoral na Grã-Bretanha é, sem dúvida, o melhor exemplo, complacentemente eclipsado pelo idílio de uma tradição inglesa da democracia liberal".
Outro aspecto importante é destacar o papel da mulher, historicamente confinada à vida privada, representando "a longa duração da exclusão da participação na vida pública". Até o início do século XX, o voto, na quase totalidade dos países, incluindo o Brasil, era um direito exclusivo dos homens. No Brasil Império, o voto era censitário, ou seja, exigia-se determinada renda para ser eleitor e candidato; e no Brasil republicano, por mais de 40 anos excluiu-se a mulher de votar e, por mais de 90, os analfabetos.
No livro História das mulheres no Ocidente (Editora Afrontamento, 1994), Michèle Perrot, Georges Duby e Geneviève Fraisse mostram que os movimentos feministas do século XIX e início do século XX lutavam principalmente pela extensão do direito do voto.
Mas essa foi uma conquista desigual. Países como a Nova Zelândia, em 1893, e a Finlândia, em 1906, foram os primeiros a reconhecer o voto feminino, mas no século XX, o direito das mulheres ao voto foi duramente conquistado: na Dinamarca, em 1915; Alemanha, em 1918; Estados Unidos, Suécia e Grã-Bretanha, somente após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919. No Brasil, apenas em 1932 (no Código Eleitoral Provisório de 24 de fevereiro de 1932). Para citar outros exemplos: Suíça, em 1971; África do Sul, em 1993; e Arábia Saudita, em 2015.
Como afirma Rancière, as mulheres foram excluídas dos benefícios dos direitos de cidadania em nome da divisão entre esfera pública e privada e, até hoje, a desigualdade política persiste. Isso se expressa na porcentagem de mulheres em cargos eletivos, e o Brasil é um dos exemplos: mesmo com maioria do eleitorado sendo feminino, a representação é baixa nos parlamentos municipais, estaduais e no Congresso Nacional - ainda muito distante da igualdade política entre os gêneros.
Numa democracia efetiva, ninguém pode - nem deve - ser privado de direitos. No entanto, a democracia representativa sempre conviveu com a desigualdade (não apenas entre gêneros), legitimada socialmente por leis, instituições e costumes.
Para Rancière, a democracia não é uma forma de Estado, mas um fundamento de natureza igualitária, cuja atividade pública contraria a tendência de todo Estado de monopolizar a esfera pública e despolitizar a população: "O que chamamos de democracia é um funcionamento estatal governamental que é o exato contrário: eleitos eternos, que acumulam ou alternam funções municipais, estaduais, legislativas ou ministeriais, e veem a população como o elo fundamental da representação dos interesses locais; governos que fazem eles mesmos as leis".
Ele usa a expressão Estados de direito oligárquicos, nos quais predomina uma aliança entre a oligarquia estatal e a elite econômica: "As limitações ao poder ocorrem apenas no reconhecimento mínimo da soberania popular e das liberdades individuais. Ambas devem ser encaradas não como concessões, mas como conquistas obtidas e perpetuadas por meio da ação democrática, ou seja, pela participação cidadã na esfera pública".
Ao analisar a burguesia, Karl Marx mostra como a única liberdade defendida por ela é a liberdade de mercado, e que, no capitalismo, a essência é a exploração dos trabalhadores e a desigualdade, incompatível com a democracia.
Rancière indaga quais são as formas de expressão dessa democracia nas sociedades ocidentais e responde: a apropriação da coisa pública por uma sólida aliança entre a oligarquia estatal e a econômica, que se expressa na promiscuidade entre público e privado na administração do Estado, e passa pelo financiamento dos partidos políticos que elegem representantes para defender seus interesses, considerando ainda o papel relevante da hegemonia dos meios de comunicação, a serviço dos donos de impérios midiáticos privados.
A redução dos espaços da política torna-se o imperativo dessa associação entre a burocracia estatal e o mercado, levando ao surgimento de um novo sujeito identificado com o que ele chama de Estados oligárquicos de direito, e não com a democracia.
Enfim, o livro de Rancière é uma importante contribuição sobre um tema relevante e atual. O diagnóstico apresentado por ele pode servir de reflexão para todos os que se preocupam, não apenas com a manutenção da democracia que temos, mas também com seu aperfeiçoamento. O ódio e o desprezo à democracia pavimentam o caminho para golpes de Estado (ou tentativas) e ditaduras.
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