Marco Civil da Internet e as ações (em julgamento) no STF

03/01/2025

"A desinformação era uma parte importante destacada no relatório da PF, usada fartamente na Internet e redes sociais"

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Atualizada em 02/05/2025, às 09:22



No dia 27 de novembro de 2024 foi iniciado no Supremo Tribunal Federal o julgamento de ações que questionam as regras do Marco Civil da Internet e mais especificamente sobre a responsabilidade das plataformas pelos conteúdos publicados 

por usuários. Até o dia 4 de dezembro de 2024 já tinha sido realizadas três sessões.

O julgamento foi antecedido por audiências públicas, com representantes do Executivo, Legislativo, plataformas e entidades da sociedade civil. Como informa a página do STF na internet, entre os dias 28 e 29 de março de 2023 foram realizadas mais uma, com 47 expositores para debater suas regras "objeto de dois Recursos Extraordinários que discutiram a responsabilidade de provedores de aplicativos ou de ferramentas de internet pelo conteúdo gerado pelos usuários e a possibilidade remoção de conteúdos que possam ofender direitos de personalidade, incitar o ódio ou difundir notícias fraudulentas a partir de notificação extrajudicial".

Um dos pontos principais a ser analisado é o artigo 19 do Marco Civil da Internet. A discussão é sobre a necessidade de decisão judicial para exclusão de conteúdos de usuários nas redes e a responsabilização das plataformas e também a possibilidade de bloqueio de redes sociais que não cumprirem as determinações legais.

O Marco Civil da Internet, elaborado com o objetivo para regulação do setor digital no país se tornou Lei (n. 12.965) que foi aprovada no dia 23 de abril de 2014 estabelecendo "Princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria". 

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Foto: Webnode.



Trata-se, portanto, de uma norma legal que disciplina ao uso da internet no país. Composta por 32 artigos, o artigo 19 diz: "Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário".

Na longa exposição, o ministro Dias Toffoli, relator de uma das ações no julgamento no STF, destacou a necessidade de responsabilização das plataformas e considerou que "o regime de responsabilidade dos provedores de aplicação por conteúdo de terceiros, previsto no artigo 19 do Marco Civil da Internet é inconstitucional". Seu voto foi para invalidar o artigo 19 e adotar o artigo 21 que estabelece punições às plataformas em casos de vídeos e imagens sexuais publicados sem o consentimento das pessoas e nesse sentido defende que os mesmos princípios devem ser considerados caso não haja a remoção de conteúdos que representem "danos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de cidadãos" e também responsabilizar as plataformas por publicações que contenham atos de racismo, terrorismo, violência contra a mulher, incitação ao suicídio, crimes contra a democracia e divulgação de mentiras.

A realização do julgamento se dá em um contexto da publicação do Relatório da Policia Federal sobre a trama golpista, encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 21 de novembro de 2024 (processo instaurado no dia 26/6/2023) e tornado público por decisão do ministro Alexandre de Moraes cinco dias depois, em 26 de novembro e encaminhado para a Procuradoria Geral da Republica. A íntegra do Relatório da Polícia Federal, com 884 páginas, que indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas, sendo que 25 são ou foram militares, entre eles, quatro generais da reserva, além de um almirante, coronel, tenente-coronel, capitão reformado, juiz federal, civis golpistas e até um padre está disponível aqui.

A desinformação era uma parte importante destacada no relatório da PF, usada fartamente na Internet e redes sociais. Era um dos seis núcleos que foram criados para a trama golpista. Segundo o relatório "com os elementos de provas colhidos permitiram delimitar as ações dos investigados em seis grupos". Além da Desinformação e ataques ao sistema eleitoral; o responsável para incitar militares a aderirem ao golpe de Estado; o jurídico (para dar uma base jurídica ao golpe); o operacional de apoio às ações golpistas (entre seus integrantes os chamados kids pretos "no planejamento traçado pela organização criminosa o emprego de forças especiais do Exército seria um elementos preponderante para o êxito do golpe de Estado"; o núcleo que foi chamado de Inteligência Paralela e o operacional para "cumprimento de medidas coercitivas".

E dos fatos revelados na investigação foi o de que os integrantes da organização criminosa elaboraram um plano que tinha por objetivo prender e executar o ministro Alexandre de Moraes (...) e também assassinar o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin "com a finalidade de extinguir a chapa vencedora das eleições presidenciais de 2022" e para a execução do presidente Lula, o planejamento foi denominado de Operação Punhal Verde e Amarelo "o documento descreve, considerando sua vulnerabilidade de saúde e ida frequente a hospitais, a possibilidade utilização de envenenamento ou uso de químicos para causar um colapso orgânico". Segundo o relatório Bolsonaro tinha conhecimento pleno da operação "bem como das ações clandestinas praticadas sob o codinome Copa 2022".

Na troca de mensagens entre integrantes do grupo foi discutida até a possibilidade de campos de concentração ("campos de prisioneiros de guerra"), com referência inclusive a Auschwitz "nome do mais famoso campo de concentração nazista onde foram assassinadas milhões de pessoas (a grande maioria formada por cidadãos judeus)".

A importância da desinformação era porque tinha por objetivo "criar e difundir narrativas falsas sobre a existência de vulnerabilidade e fraudes no sistema eletrônico de votação, que teria como artífices ministros da Suprema Corte e do Tribunal Superior Eleitoral", e o fato de que os ataques não começaram depois da derrota de Bolsonaro em outubro de 2022 "desde 2019 já se propagara com o objetivo de sedimentar na população a falsa realidade de fraude eleitoral para posteriormente a narrativa atingir seus objetivos, a de não ser interpretada como um possível ato casuístico" e que foi utilizado como um dos instrumentos de mobilização para os atos que se sucederam após a derrota de Bolsonaro, como as ações violentas em Brasília nos dias 12 e 24 de dezembro de 2022 "e principalmente no dia 8 de janeiro de 2023 quando foi deflagrada as ações violentas contra as sedes dos poderes constituídos com o objetivo de cooptar a adesão das Forças Armadas para consumar o Golpe de Estado".

E sua relação com o julgamento sobre o Marco Civil da Internet no STF diz respeito justamente ao uso das plataformas digitais para a difusão de mentiras, fake news e desinformação (através de aplicativos de mensagens, redes sociais, vídeos, etc.) que os investigados usaram para desacreditar o processo eleitoral e justificar um golpe de Estado e a abolição do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, o Relatório da PF destaca o papel dos então diretores da Agência Brasileira de Informação (ABIN) e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), além de servidores de ambos, no planejamento e execução para disseminar noticias falsas, usando listas de transmissão, arquivos de áudios etc., - e é importante salientar, com a ciência e anuência do então presidente da República que foi o mentor, o que planejou, atuou e sabia, ou seja, quem "teve o domínio de forma direta e efetiva".

E para ter êxito na tentativa golpista "os investigados se utilizaram do modus operandi da denominada milícia digital" e que "por mais inverossímel que possa parecer, os investigados sabiam que a narrativa falsa de fraude nas urnas sendo disseminada por muito tempo, por vários veículos, especialmente na internet em grande volume, ser extremamente eficaz em seu público alvo". E que os investigados tinham plena ciência de suas ações "em especial a produção de desinformação sem qualquer lastro com a realidade e com a subsequente difusão de desinformação, seja por meio dos vetores de propagação cooptados, seja em grupo de rede social materializando os ataques".

O fundamental e que se coloca em discussão no STF em relação às ações que questionam o Marco Civil da Internet é que a desinformação, que fez parte da estratégia golpista, teve ampla difusão na internet (redes sociais etc.) sem que houvesse mecanismos legais para impedir o que o relatório da Polícia Federal chamou de "empreitada criminosa" ou o que chamou de "ação coordenada dos integrantes da organização criminosa", que se valeu inclusive da criação de perfis fakes na internet, atuando "com dolo, consciência e livre vontade na produção e divulgação por diversos meios da narrativa sabidamente falsa".

Nessa discussão específica, se for esperar pela decisão do Congresso Nacional, a quem cabe à responsabilidade de aprovar leis, pode ter o mesmo destino do PL das fake news que depois de ser aprovado pelo Senado em 2020 e ficar quatro anos para ser votado na Câmara dos Deputados, uma decisão do presidente da Câmara, Artur Lira, no dia 9 de abril de 2024 na prática acabou com o PL ao criar uma comissão para elaborar outro (o que não foi feito ainda), sem qualquer garantia que seja votado e se for, certamente muito diferente em relação ao que foi aprovado no Senado.

O Marco Civil foi aprovado em 2014, portanto há 10 anos e ainda está em discussão a constitucionalidade do art.19. E mais: o julgamento foi adiado duas vezes pelo STF, aguardando a votação no Congresso Nacional, que não houve e agora cabe ao STF decidir sobre a responsabilidade das redes em situação de ataques à democracia, como revelou o relatório da PF sobre a trama golpista, que não deve nem pode ser adiado indefinidamente.

Isso significa afirmar que decisões como essas não são uma afronta ao Poder Legislativo. Como afirmou o ministro Alexandre de Moraes, nem andou no Legislativo ("em decorrência da ação das big techs") e que a chamada autorregulação, faliu. Em seu parecer no julgamento o ministro Dias Tofolli se referiu a um "notório anacronismo legislativo e, por conseguinte uma flagrante omissão inconstitucional" e criticou o "ambiente de violência digital".

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal pode e deve definir sobre a responsabilização dos provedores por conteúdos publicados por seus usuários, ou seja, são questões que dizem respeito à preservação dos princípios da Constituição, como é o caso, no momento, do julgamento de ações, como as duas que tratam especificamente do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

O ministro Alexandre de Moraes tem defendido a regulamentação das redes visando à normalidade democrática, que não pode e nem deve continuar sendo uma "terra de ninguém", para cometimento de crimes, em nome de uma pretensa liberdade de expressão, e sem qualquer punição. Nesse sentido, a responsabilização das redes por conteúdos publicados é fundamental. 

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