Desinformação, mentiras e seus usos em eleições

06/09/2024

Uma das reflexões importantes para se compreender a relação entre a mentira e a verdade (e seus usos políticos) foi feita pela filósofa alemã Hannah Arendt  

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desinformação e mentiras tem tido, ao longo da história, um papel importante na política. São incorporadas as estratégias discursivas nas campanhas eleitorais utilizados para influenciar eleitores, e com êxito, em especial quando dirigidas a um público submetido a uma avalanche de informações (e desinformações) que não consegue muitas vezes diferenciar a verdade da mentira.

Há diversos estudos evidenciando como a mentira está intimamente ligada à política e que hoje se potencializa com o desenvolvimento tecnológico, a expansão e influência das redes sociais e que na chamada era da pós-verdade, crenças e convicções têm se sobreposto aos fatos. Uma das contribuições nesse sentido é de Matthew D'ancona ao analisar o uso da mentira na política no livro Pós-Verdade: A Nova Guerra Contra os Fatos em Tempos de Fake News (Faro Editorial, 2018). Pós-verdade aludida por ele, significa que a verdade já não é mais importante, o que significa afirmar que há o triunfo da mentira : "Promessas irrealizáveis são compatibilizadas com expectativas absurdas; os objetivos inalcançados são ocultados pelo eufemismo e pela evasão; o hiato entre retórica e realidade gera desencantamento e desconfiança".

O Dicionário Oxford se refere a pós-verdade como "às circunstâncias na qual os fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública, são aquelas que apelam mais para a emoção e à crença pessoal do que pela verdade".

Nesse sentido, com a proximidade do início das campanhas eleitorais para a eleição de outubro (prefeitos e vereadores) talvez seja importante analisar a forma como a desinformação (no sentido de que se trata de difundir deliberadamente informações falsas, enganosas ) e mentiras, associadas ao uso do medo, do pânico moral, discursos de ódio e tc., são utilizados por candidatos e os estrategistas de suas campanhas e assim a importância de compreender a lógica do engajamento, do uso intenso das redes digitais incorporadas na propaganda eleitoral.  

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Mentiras se espalham rapidamente via internet em todo o mundo. Foto: Webnode.



Uma das reflexões importantes para se compreender a relação entre a mentira e a verdade (e seus usos políticos) foi feita pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) uma das milhões de vítimas da barbárie nazista (que usou a mentira como uma de suas estratégias mais eficazes). Autora de vasta obra, entre outras, A origem do totalitarismo (1951), A condição Humana (1958), no livro Entre o passado e o futuro - publicado em 1967 e no Brasil em 1997 pela Editora Perspectiva - reuniu oito ensaios (A tradição e a Época Moderna, o Conceito de História, O que é Autoridade? O que é Liberdade? Crise na Educação, Crise na Cultura, A Conquista do Espaço e a Estatura Humana e Verdade e Política). Este último, como ela diz na introdução, foi ocasionado pelo que chamou de pseudo controvérsia que se seguiu à publicação do livro Eichmann em Jerusalém (1963) e teve como objetivo esclarecer primeiro, à questão de ser ou não sempre legítimo dizer a verdade e segundo, refutar a "espantosa quantidade de mentiras utilizadas na 'controvérsia', sobre o que escrevi".

Para ela, a impostura, a falsificação e a mentira são empregadas como meio para alcançar objetivos políticos (que não se restringe, evidentemente, ao caso da Alemanha nazista e continuam sendo utilizados, mesmo em países democráticos) . Ao analisar a verdade na política afirma que "A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis pelos governantes (...) a verdade factual não é mais autoevidente do que a opinião, e essa pode ser uma das razões pelas quais os que sustentam opiniões acham relativamente fáceis desacreditar a verdade factual com simplesmente outra opinião" (p.301).

Para Hannah Arendt, o resultado da substituição da verdade pela mentira não é que as mentiras passam a ser aceitas como verdades, nem que a verdade passa a ser difamada como mentira, mas a destruição do próprio sentido que usamos para nos orientar.

Além das redes sociais, é preciso destacar também o papel dos meios de comunicação nesse processo. Como disse Patrick Charaudeau no livro A manipulação da verdade – do triunfo da negação às sombras da pós-verdade (Editora Contexto, 2022): "O público é designado para ver o mundo pelo prisma da seleção da mídia (...) para se emocionar coletivamente por medo (...) para tomar partido de maneira radical, para se indignar e se revoltar sem possibilidade de análise dos acontecimentos" (p.122).

Em campanhas eleitorais, além da importância de saber distinguir o que é falso do que é verdadeiro, de promessas irrealizáveis, é se ter consciência de que a desinformação e mentiras podem ter consequências trágicas, especialmente quando se usa a mentira e a desinformação que se eleger.. Quando está no exercício do poder, os mentirosos e manipuladores têm a possibilidade tomar decisões que afetam a sociedade.

Há muitos exemplos. No caso da presidência da República, vimos o que ocorreu durante a pandemia no Brasil quando o presidente da República e seus aliados (dentro e fora do parlamento) defendiam e estimulavam (e no caso do presidente, até mandando o Exército fabricar) remédios totalmente ineficazes para a Covid-19 como cloroquina e ivermectina, além dos questionamentos sobre a ineficácia de vacinas, com as consequências que se conhece: uma das mais altas taxas de letalidade por Covid do mundo, com mais de 750 mil mortes, afora os milhões de infectados.

Embora mentiras faça parte do "cardápio eleitoral" se tornam muito mais danosas quando são ditas e defendidas por autoridades que deveriam se pautar pelo conhecimento, pela ciência, com sensatez, equilíbrio e não pela ignorância, alimentando ressentimentos e preconceitos e contribuir com desinformação e mentiras para ampliar a espiral da estupidez, como entre outros exemplos, ataques à ciência, o negacionismo climático e teorias da conspiração.

No artigo A arte de manipular multidões: técnicas para mentir e controlar as opiniões se aperfeiçoou na era da pós-verdade, publicado no dia 28 de agosto de 2017 no jornal El País Alex Grijelmo afirma que a chamada era da pós-verdade é na realidade a era do engano e da mentira com a popularização das crenças falsas e a facilidade para fazer com que os boatos prosperem.

Hoje, com o avanço da tecnologia, o uso da Inteligência Artificial (IA) permite usar a desinformação e a mentira de forma muito mais sofisticada e eficaz, como entre outros exemplos, manipular digitalmente documentos, falas e imagens, que passaram a ser usadas (também) em campanhas eleitorais.

Mas há também outros aspectos relevantes nesse processo de desinformação, mentiras e manipulação destacado por Guijelmo, que é a omissão ou o silenciamento: as técnicas de silêncio costumam ser mais eficazes porque se emite uma parte comprovável da mensagem, se omite outra igualmente verdadeira. Se desqualifica quem questiona e são usadas "por grupos de dezenas de milhares de cidadãos que não toleram uma ideia discrepante, que se realimentam uns com os outros, que são capazes de linchar quem, a seu ver, atenta contra o que eles consideram inquestionáveis, e que exercem seu papel de turba mesmo sem saber muito bem o que estão criticando". (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/22/opinion/1503395946_889112.html

É fato também que hoje, com as agências de checagens etc., se tem a possibilidade de desmentir, mas não é fácil quando, apesar dos desmentidos, há o que ele chama de insistência na asseveração falsa, e a desqualificação de quem a contradiz. E a isso se soma ao fato de que os que acreditam nas mentiras se abastecem com notícias falsas diretamente nas fontes manipuladoras: páginas de internet – blogs, sites especializados (em mentir), influenciadores nas redes sociais etc.- criando bolhas, que se retroalimentam e fica muito difícil quem está preso nelas de saírem.

São muitos os exemplos de como a mentira tem um papel fundamental na política e em eleições em particular. É importante ressaltar o que ocorreu nos Estados Unidos, com Donald Trump e suas mentiras porque elas afetam – ou podem afetar – não apenas o seu país, mas o mundo e mais ainda, com a possibilidade de seu retorno à presidência nas eleições de novembro de 2024. Na campanha eleitoral de 2016, quando foi eleito, fez uso sistemático de mentiras.

No artigo As mentiras de Trump: uma lição para os meios de comunicação, publicado em 11/11 2020 no jornal Folha de S.Paulo, Federico Finchelstein, autor entre outros do livro Uma breve história das mentiras fascistas (Editora Vestígio, 2020) afirma que a negação fanática da realidade é uma essência chave do trumpismo "um líder que apresentou uma combinação populista de direita tão desastrosa de negação da ciência com relação à Covid-19, somada a racismo, violência, corrupção, posições e ações falhas em termos de economia, política, saúde, mudança climática e desigualdade de renda". (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/11/as-mentiras-de-trump-uma-licao-para-os-meios-de-comunicacao.shtml

No livro A morte da mentira: notas sobre as mentiras da era Trump (Editora Intrínseca, 2018), Michiko Kakutani diz Trump mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o Washington Post calculou que só no primeiro ano de seu governo (2017) ele fez 2.140 alegações falsas ou enganosas, uma média de 5,9 por dia.

No primeiro debate com Joe Biden realizado no dia 27 de junho de 2024, a CNN dos Estados Unidos analisou as falas de Donald Trump e constatou que ele propagou pelo menos 28 informações falsas (mentiras) (https://www.poder360.com.br/internacional/cnn-diz-que-trump-da-28-declaracoes-falsas-durante-debate/).

A desinformação, o uso da mentira, notícias falsas (fake news) se transformaram em uma verdadeira indústria e se expande no terreno fértil da ignorância, utilizados não apenas nas campanhas eleitorais, mas também em governos (ou mandatos parlamentares) de quem foi eleito usando mentiras.

E quando no exercício do poder, possibilita a difusão de mentiras e desinformação. No dia 11 de julho de 2024 foi publicada no portal G1 uma matéria intitulada "Investigado usava o 'grupo dos malucos' para difundir informações falsas sobre ministro do STF e seus familiares". Trata-se de um relatório da Polícia Federal, resultado de investigações no esquema que ficou conhecido como Abin paralela no qual se constatou que foram monitoradas autoridades, servidores e jornalistas. Eles controlavam perfis e grupos utilizados para difundir desinformação para atacar adversários e instituições. Segundo a matéria foram interceptados diversos diálogos entre o policial federal Marcelo Araújo Bormevet e o militar Giancarlo Gomes Rodrigues indicando possíveis ações clandestinas contra os ministros do STF Alexandre de Moraes e Roberto Barroso "com o escopo de questionar a credibilidade do sistema eleitoral" (https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/07/11/investigacao-abin-suposta-espionagem-grupo-dos-malucos.ghtml).

O problema portanto, são as consequências, possibilitando eleger mentirosos seguidores que faz uso da desinformação e mentiras, e se torna muito mais danoso em contextos nos quais a polarização política impossibilita um debate racional, abrindo espaço para todo tipo de mentiras.

No Brasil, onde a desinformação e mentira são também um componentes fundamentais nas campanhas eleitorais (usando em profusão pelo candidato da extrema direita vitorioso em 2018) e um dos problemas é inexistência de leis que possa combater com a eficácia a circulação de mentiras, as fake news.

Há muito circula no Congresso Nacional o PL 2630/2020 (Lei Brasileira da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet) que foi aprovado no Senado em 30/6/2020 e ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, assim como o inquérito das fake news (Inquérito 4.781) aberto pelo STF em 2019 para apurar ameaças a seus integrantes e disseminação de conteúdos falsos na internet (inquérito ainda não concluído). Também é importante iniciativas do STF, como a criação do Programa de Combate à Desinformação (em 2021) e a publicação (e difusão) de livros como Desinformação, o mal do século. Distorções, inverdades, fake news: a democracia ameaçada (STF/Editora da Universidade Brasília) (disponível em https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/handle/123456789/5626).

É de fundamental importância também ter uma lei que possa coibir - pessoas e plataformas digitais - de mentir, distorcer, desinformar e manipular. Trata-se de um grande desafio, urgente e necessário e não apenas em relação as eleições mas especialmente em relação a elas pelas repercussões subsequentes.

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