E não se trata de algo recente, sempre existiu, "está nas entranhas do ser humano, é uma
tendência universal (...) enquanto atitude, ela possui um alcance universal: todos os
seres humanos são aporófobos por raízes cerebrais, mas também sociais, que podem e
devem ser modificadas, se é que levamos a sério ao menos estas duas chaves da nossa
cultura, o respeito à igual dignidade das pessoas e à compaixão, entendida como a
capacidade de perceber o sofrimento dos outros e de se comprometer a evitá-lo".
Na Europa, demagogos de extrema direita e seus cúmplices se posicionam contra os
imigrantes e refugiados. Eles não são bem-vindos em todos os países, e pior, com apoio
de parcelas significativas da sociedade, que os percebem como ameaças, mas para
Adele Cortina o ódio a imigrantes e refugiados não se deve ao fato de serem
estrangeiros, mas por serem pobres. São os ninguéns a que se refere Eduardo Galeano
no Livro dos abraços (Editora LP&M, 1991) Os ninguéns. Os ninguéns: os filhos de
ninguém, os donos de nada. (...) Que não são seres humanos, são recursos humanos (...).
Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome,
tem número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da
imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata" (p.71)
Uma matéria publicada por Felipe Souza da BBC News Brasil em São Paulo em 6 de
janeiro 2022 mostra como a aporofobia se expressa em algumas cidades do Brasil.
Como em São Paulo e Florianólis, por exemplo. São objetos como pedras, grades e
espetos de ferro que foram inseridos na arquitetura de diversas construções e
equipamentos públicos com o objetivo de "evitar a presença e permanência dos mais
pobres, principalmente os moradores de rua". Em Florianópolis foram construídos
pontos de ônibus com ferros em forma de cilindro e espaçado, que impede que alguém
se deite. Na época, foi denunciado e como teve grande repercussão, a Prefeitura de
Florianópolis disse que trocaria todos os bancos 'anti-humanos' por novos modelos.
Havia também várias placas espalhadas nos semáforos pela cidade, exibindo diferentes
textos, tais como "A miséria compromete o nosso futuro. Não dê esmola" (até mesmo
em igreja, proibindo que as pessoas dessem esmolas nas suas dependências).
Em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua que,
desde 1986, promove trabalhos sociais voltados principalmente para a população em
situação de rua na cidade de São Paulo que tem usado esse termo, aporofobia,
denunciando e criticando procedimentos contra os pobres que moram nas ruas, o que ele
chama de instalações hostis como uso de grades, lanças, cacos de vidro, pedras
pontiagudas e outros visando impedir que pessoas em situação de rua os ocupem, que
expressa à aversão às pessoas mais pobres.
Um dos principais objetivos do Padre Júlio Lancellotti é o de fazer com que os órgãos
públicos retirem as instalações urbanísticas que impedem a aproximação e permanência
de moradores de rua em locais públicos, como por exemplo, grades em bancos de praças
para evitar que uma pessoa se deite.
Em 12 de dezembro de 2022, ele se reuniu com voluntários para quebrar a marretadas
pedras colocadas na frente da Biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, Zona Leste de
São Paulo. As pedras pontiagudas já haviam sido instaladas pela Prefeitura em um
viaduto na cidade, para evitar que o local fosse utilizado como abrigo por moradores de
rua (ou população em situação de rua).
Esse tipo de instalação não é recente, ocorre não apenas em cidades brasileiras, mas
também em grandes metrópoles e uma referência fundamental sobre esses
procedimentos é o livro Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles de
Mike Davis (1946-2022) publicado no Brasil em 2009 pela Boitempo. Considerado um
clássico da sociologia urbana analisa a construção de Los Angeles (Estados Unidos),
uma metrópole que, como São Paulo, junta riqueza e miséria ao mesmo tempo.
Segundo Davis a área metropolitana de Los Angeles, no final dos anos 1980, podia ser
compreendida como a metáfora de um desajuste estrutural do sistema capitalista, que
ampliou a desigualdade, com a especulação imobiliária, condomínios fechados,
aumento da violência urbana e com a expansão do transporte individual.
O objetivo primordial era o da busca incessante e incondicional pelo lucro máximo, que
como diz Ricardo Líseas na orelha do livro "'constrói espaços urbanos vazios de
qualquer humanidade", de evitar a presença de pessoas pobres, marginalizando,
expulsando-as, em especial, migrantes e cujo desdobramento foi uma série de eclosões
violentas na década seguinte, previsto por Mike Davi, como a conhecida revolta de Los
Angeles de 1992 (https://observatoriodatv.uol.com.br/noticias/especial-retrata-conflitossociais-de-los-angeles-em-1992)
E um problema que está presente hoje. No Brasil, são milhares de pessoas morando nas
ruas e em metrópole rica como São Paulo. E não por acaso. Desde 2015, o país voltou a
fazer parte do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e o relatório O
Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), publicado no dia 12 de
julho de 2023 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO), confirmou a piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar no Brasil. E
segundo os dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil de 2022, mais de 33 milhões de pessoas
não tinham o que comer (e milhares nem onde morar) resultado do desmonte das
políticas públicas sociais que o país viveu nos últimos anos. Segundo o ministro do
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fome, Wellington Dias,
com a implantação total do novo Bolsa Família e seus novos adicionais por crianças,
gestantes e adolescentes até 18 anos incompletos, o Governo Federal – dados de junho
de 2023 — retirou 18,5 milhões de famílias da linha da pobreza. É o caminho para que
o país saia, mais uma vez, do Mapa da Fome.
Mas a pobreza, a fome, a miséria, as desigualdades e a aporofobia continuam. Não se
resolve em curto prazo. Em relação ao combate a aporofobia, em São Paulo como
desdobramento da luta do padre Júlio Lancellotti, a Comissão de Desenvolvimento
Urbano, da Câmara dos Deputados, aprovou em novembro de 2021 o projeto de lei
Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a implantação de técnicas e construções que usem
equipamentos para afastar ou restringir o uso de espaços públicos, principalmente por
pessoas em situação de rua. A chamada arquitetura hostil em espaço público, como
bancos de praça, que eram retos, e foram substituídos por bancos ondulados justamente
para evitar que pessoas possam durmam neles.
Em dezembro de 2022 foi aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado a lei
14.489/2022, Lei Padre Júlio Lancellotti que foi vetada pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. Publicada no Diário Oficial da
União do dia 22 de dezembro de 2022, precisou ser republicada após uma correção e foi
promulgada e publicada no dia 11 de janeiro de 2023.
Uma das iniciativas importantes, criado com a ajuda do padre Júlio Lancellotti foi o
Observatório de Pobrefobia/Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga que realiza estudos,
pesquisas para denunciar locais em todo o país que estejam adotando arquitetura hostil
para afastar a presença de moradores em situação de rua. Em seu site publicou um mapa
com locais em São Paulo com arquiteturas hostis (aos pobres) disponíveis em
https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=1ABBfMAIWkx7sqZX6wHeBl4zGoZFngg&ll=-23.79430834777889%2C-44.82408300433117&z=8
O tratamento desumanizado à pessoa em situação de rua ofende e viola a dignidade da
pessoa humana. Diz Adela "Se em nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o
aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível fazer com que as pessoas
tratem todas as pessoas igualmente, reconhecendo-as como iguais".
Reconhecer como iguais numa sociedade tão desigual como no Brasil no qual milhões
de pessoas vivem na extrema pobreza, além da importância (e necessidade) de acabar
com o preconceito é fundamental uma mudança estrutural que possa efetivamente
acabar com a pobreza, a fome, a desigualdade e a miséria.
A aporofobia viola a dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres e a pobreza é
evitável porque hoje há recursos suficientes, como a produção de alimentos no Brasil,
para erradicar a fome. O problema central é a persistência das desigualdades.
Para Adele Cortina é preciso descobrir as raízes profundas da aporofobia, investigar
suas causas, os caminhos pelos quais cada pessoa e cada sociedade possam entender e
sentir que essa atitude é contrária à humanidade mais elementar, da necessidade uma
educação moral acompanhada de instituições sociais, políticas e econômicas capazes de
promover o respeito à igual dignidade de cada pessoa, enfim construir uma sociedade
baseada na igualdade de valor das pessoas "educando no respeito pela dignidade de
todas elas, e não só com palavras, mas também mostrando no dia a dia que nos
reconhecemos e nos sentimos igualmente dignos".