A língua de Trump

09/05/2025

Vulgar e confusa, "recheada de erros de sintaxe e de frases sem pé nem cabeça, de sarcasmo e de invectivas"

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Atualizada em 09/05/2025, às 08:05



Os quatro anos do primeiro mandato de Donald Trump nos Estados Unidos resultaram na publicação de muitos artigos (acadêmicos e de opinião), ensaios em revistas e livros, entre outros, com diferentes perspectivas, que 

buscaram compreender não apenas as circunstâncias sociais, políticas e econômicas que o elegeram, mas também como ele governou. Essa compreensão se torna importante porque ele foi eleito novamente em 2024, e analisar o que fez ajuda a pensar como será o seu novo mandato, cujo início indica a continuação do anterior.

Dos livros sobre ele, destaco um publicado na França em 2019, pela professora de tradução da universidade Paris VII, Bérengère Viennot, intitulado La langue de Trump (A língua de Trump), traduzido no Brasil em 2020 por Ana Martini para a editora Âyiné.

Dividido em 18 pequenos capítulos, ao analisar a linguagem utilizada por Trump entre 2017 e 2019, (portanto com o mandato ainda em curso), a autora mostra como a sua linguagem — que antecede a eleição e continua no seu governo — é vulgar e confusa, "recheada de erros de sintaxe e de frases sem pé nem cabeça, de sarcasmo e de invectivas — sinais de um deslocamento da realidade e da cultura".

Embora se refira aos três primeiros anos do primeiro mandato, suas análises continuam pertinentes em seu retorno à presidência em 2025. Trata-se do mesmo homem, com a mesma retórica, ideologia e ações, apenas mais velho.

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Presidente dos EUA Donald Trump. Foto: Wikimedia Commons/reprodução.



Segundo ela, ao analisar sua vitória eleitoral, "o mal-estar não se deve a um único homem. O estrago foi feito" (nas duas vitórias eleitorais), mas é importante salientar que Trump "não é um acidente na história americana. Não podemos esquecê-lo quando ele não estiver mais no poder: ele deixará sua marca não apenas nas políticas que tiver iniciado e nos juízes da Suprema Corte que tiver nomeado, mas na sociedade como um todo, que assume coletivamente a responsabilidade de tê-lo levado ao poder – aqueles que votaram nele acima de tudo, mas também as gerações de administradores que o precederam e prepararam o terreno. Assim como as ditaduras se baseiam em um sistema, os Estados Unidos fundamentaram seu presidente em uma montanha de negação, e essa negação ocorre antes de todo e, sobretudo por meio da comunicação, do discurso e da língua" (p.131).

Trump continua tão inculto e ignorante quanto no primeiro mandato, com o que ela chama de nível zero de pensamento complexo. Mas, é importante destacar, que ele é "abertamente favorável à ditadura em detrimento da democracia se esta servir aos seus objetivos". Ela lembra o apoio a ditadores no mundo, inclusive à saudação a Jair Bolsonaro quando foi eleito em 2018, "sob um programa autoritário com cheiro de retorno à ditadura militar".

Uma das expressões das regressões no país são os cortes sistemáticos do orçamento para entidades de combate ao racismo, direitos humanos, proteção a minorias, entre outros, assim como os cortes do orçamento da agência de proteção ambiental, a negação do aquecimento global, a saída do país da Organização Mundial da Saúde, e do Acordo de Paris - que se comprometeu a tomar medidas para reduzir a emissões de gases de efeito estufa (no primeiro governo, o país também havia saído do Acordo de Paris). 

Em relação ao Brasil, os Estados Unidos anunciaram o corte de mais de US$ 1 milhão de recursos destinados a entidades de direitos humanos.

São demonstrações de uma regressão institucionalizada que atinge não apenas os Estados Unidos.

Para Viennot, Donald Trump, "com reflexões binárias dignas de uma lógica infantil, está ao mesmo tempo longe do raciocínio geopolítico complexo, mas também mergulhado " naquela embromação com a qual jornalistas (e tradutores) estão acostumados" e se refere à sua linguagem cotidiana mais banal "empregada todos os dias" na qual "ele dá uma surra na língua inglesa".

Outro aspecto ressaltado por ela é que Trump não esconde que considera os imigrantes latinos insetos pestilentos, "o que deixa transparecer sua escolha no campo lexical de fato, é mais como animais do que como seres humanos que ele trata os candidatos à migração", embora, como se sabe, muitos desses "insetos" tenham apoiado nas três eleições presidenciais que disputou, sendo eleito em duas.

Ela também analisa a linguagem utilizada nos seus tweets, usados à profusão, especialmente no seu primeiro mandato, que são reveladores de sua vulgaridade (que não se limita às palavras, mas também o que ela chama — e exemplifica — de vulgaridade de espírito).

A vulgaridade é percebida como algo positivo por uma parcela da população manipulada, que "acredita ser ludibriada por uma elite política que ela não entende e que vê no lado bruto das palavras de Trump, que diz tudo o que pensa, uma forma de franqueza e, portanto, de honestidade".

Além disso, há as mentiras de Trump constantes e sistemáticas, analisadas com propriedade por Michiko Kakurani no livro "A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump" (Editora Intrínseca, 2018). Por ocasião do discurso de posse, o jornal New York Times fez uma checagem das informações e constatou muitas mentiras. Entre outras, a alegação de que outros países estariam enviando criminosos e doentes mentais através da fronteira, e mostra que não há dados oficiais que corroborem: "Relatórios do Departamento de Segurança Interna dos EUA mostram que a maioria dos imigrantes detidos na fronteira não possui antecedentes criminais graves e que não há indícios de um padrão de envio deliberado por outros países".

No entanto, é um discurso que funciona para seus seguidores, para os quais não se trata de compreender, muito menos de checar as informações para saber sua veracidade, mas simplesmente acreditar no que ele diz, como em uma seita ou religião (e ele sabe disso, pregando para convertidos).

E ao impor sua realidade a devotos fanatizados, mesmo que esteja em contradição com os fatos, cria uma dissonância cognitiva coletiva dirigida ao que Viennot chama de "bolhas delirantes", adesão acrítica a teorias conspiratórias, às mentiras, imunes à lógica e à sensatez. São palavras e discursos "enraivecidos, vingativos, arrogantes ou absurdos (...) Um turbilhão de disparates, que carrega em si o risco de prejudicar o raciocínio daqueles que estão sujeitos a ele".

Mas o aspecto importante ressaltado por Viennot é que a responsabilidade não é apenas de Donald Trump, mas coletiva. Para ela, se a sua linguagem reflete perfeitamente tanto sua maneira de pensar quanto sua política, tingida de grosseria, de misoginia, de racismo, de absoluta falta de empatia e de ganância, ela é produto do seu tempo e de sua sociedade (e encontra apoio e guarida: há quem concorde e apoie).

Em relação à sua posse em janeiro de 2025, diversos órgãos de imprensa analisaram as mentiras ditas por Trump. No artigo Heil, Trump!, publicado na revista Carta Capital no dia 23 de janeiro de 2025 por Clarissa Carvalhães, ao analisar seu discurso de posse, afirma ter sido um "genuíno espetáculo de extremismo, arrogância, obsolescência e cafonice".

Trump "condenado na justiça e notório caloteiro, divagou sobre os detalhes do muro da fronteira com o México, soltou frases desconexas, fez piadas sem graça, mas emitiu uma mensagem cristalina ao mundo: os Estados Unidos vão exercer um imperialismo à moda do século XX, está pouco se lixando para a crise climática (...) minorias e migrantes serão empurrados às trevas e viverão, no mínimo, quatro anos de pavor e insegurança".

E ainda que "em seus discursos, gestos e decretos, o presidente deixou claro o espírito fascistóide do novo governo".

Não por acaso, no mesmo dia, perdoou 1,5 mil condenados pela invasão do capitólio em 6 de janeiro de 2021. Também não deve ser esquecido, na cerimônia de posse, o gesto nazifascista de Elon Musk, que "demonstrou em um só movimento o caráter e a inspiração dos novos inquilinos da Casa Branca" e lembrou a realização de uma reunião de extremistas de direita no dia anterior à posse, da qual participou o deputado Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon. O ideólogo do trumpismo fez um gesto semelhante ao saudar os participantes.

Sobre os imigrantes já deu demonstrações, logo no início do seu governo, como eles serão tratados. Entre outras medidas, assinou um decreto para acabar com a cidadania por direitos de filhos de imigrantes nascidos no país, o que tem sido contestado pela justiça como "ato extremo e sem precedentes e um ataque ao Estado de Direito".

E destaca, no final do artigo, o troféu vergonha alheia para os parlamentares bolsonaristas que foram passear no frio de menos 5 graus em Washington, em especial para Eduardo Bolsonaro e Michelle Bolsonaro (...) excluídos da cerimônia da posse e dos principais eventos comemorativos, após toda a mise-en-scène no Brasil, tiveram de se contentar com um jantar secundário. E conclui afirmando "a sabujice não tem preço".

Retornando ao livro A língua de Trump, a autora finaliza dizendo por que se deve ouvir Trump, e não apenas considerá-lo um maluco, ou um mero megalomaníaco (como afirmar ser uma espécie de um enviado dos céus para salvar o país, etc.), mas para poder compreender o que ela chama de nova língua americana, que "não é produto de uma geração espontânea na boca de um bilionário que surgiu do nada".

Para Viennot, não podemos reduzi-lo às elucubrações de um homem que gostaríamos de considerar como completamente louco, mas sermos obrigados a ouvir o que ele diz . Ele deve ser ouvido porque não é tão estúpido pela força do seu ego, e apesar de sua incultura generalizada, ele conseguiu chegar a presidência de uma das nações mais poderosas do mundo, mas também "porque, no Ocidente, o reino da razão viveu", mas também "porque ele é contagioso: no Brasil, na Hungria, na Turquia, na Itália, na Áustria e em outros lugares, a violência da palavras e dos atos se intensifica. Nesses países (...) mais e mais cidadãos voltam os ouvidos na direção dos Estados Unidos e ouvem, todos eles, a língua de Trump".

E em relação à regressão, o exemplo mais significativo até agora, são os sistemáticos ataques às universidades, expressão do desprezo ao conhecimento, cultura, civilidade e educação. Umberto Eco no livro O fascismo eterno (Record, 2018), lista 14 características do que chamou de Ur-fascismo ou fascismo eterno, embora saliente que "não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme de uma nebulosa fascista". Entre elas, o desprezo à cultura e cita uma declaração atribuída a Goebbels: "quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola". Para os nazifascistas, as universidades, não por acaso, foram consideradas um ninho de comunistas.

A suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de fascismo.

Em relação ao governo de Donald Trump, como mostra uma matéria da CNN (Stephen Collinson) no dia 16 de abril de 2025, durante a campanha eleitoral, Trump criticou duramente as instituições de ensino que, segundo ele, estavam lotadas de "maníacos marxistas" e acusou os acadêmicos das universidades de Yale, Cambridge e Columbia – uma das universidades que teve corte de orçamento de US$ 400 milhões e depois cedeu às suas pressões — como "ativistas de extrema-esquerda que promovem políticas 'woke' sobre raça e gênero". Um dos objetivos do governo é o de acabar com as políticas de inclusão e equidade.

No entanto, ele tem encontrado resistência (como na sociedade de uma maneira geral, expressa em muitas manifestações de ruas em protestos contra um conjunto de medidas regressivas do governo), como a do reitor de uma das mais prestigiadas universidade do mundo, Harvard, Alan Garber, que decidiu não ceder às exigências do governo para mudar suas políticas, declarando que a instituição não "abriria mão de sua independência ou de seus direitos constitucionais". No dia 14 de abril, o governo anunciou o corte de US$ 2,2 bilhões em contratos e subsídios. A universidade recorreu à justiça e o processo está em andamento. No dia 24 de abril Trump criticou Harvard, chamando-a de "instituição de extrema esquerda e antissemita".

Como mostra a matéria, o ataque às principais universidades do país vai além de uma questão de obter apoio de sua base política. Ela faz parte de "um esforço mais amplo para desafiar os centros do que considera poder liberal, que também inclui os tribunais, a burocracia federal e a mídia".

No artigo A inteligência que foge do fascismo publicado no jornal O Globo no dia 20 de abril de 2025, a jornalista e documentarista Dorrit Harazim cita uma pesquisa da revista Nature com 1.600 cientistas nos EUA, na qual 75% declararam estudar a possibilidade de sair do país: "O corte nas verbas para pesquisa, as tentativas de silenciamento da contradita e a repressão à imigração foram citados como principais motivos. Entre os que saíram estão o professor de filosofia da Universidade de Yale, Jason Stanley, o historiador Timothy Snyder e sua mulher Marci Shore, professora de História intelectual europeia. Stanley, é autor, entre outros livros, de Como funciona o fascismo. A política do "nós" e "eles"(Editora L&PM, 2018) que, como diz Dorrit, "Centra sua obra na manipulação emocional da propaganda fascista e nos riscos de uma sociedade ignorar sinais precoces de autoritarismo" e Snyder é autor do livro Sobre a tirania —Vinte lições do século XX para o presente (Editora Companhia das Letras, 2017) que "pesquisa o elo que brota no fascismo histórico e desemboca nos tempos atuais".

Em relação ao governo de Donald Trump, seu objetivo, como diz Stephen Collinson, é estender sua influência ao ensino superior "para desafiar sistemas de crenças que conflitam com seu credo no MAGA e inclinar o país radicalmente para a direita" e que os cortes anunciados para as universidades, entre outros aspectos, "colocam em risco a pesquisa científica e médica de ponta do país sobre doenças fatais como câncer e Alzheimer".

Entre as exigências de Trump, cita "o fim de todos os programas de diversidade, equidade e inclusão, incluindo reduções no poder do corpo docente e ameaças de novas repressões contra protestos estudantis, grupos e clubes estudantis, incluindo aqueles que apoiam a soberania palestina e ordenou também investigações sobre protestos e ocupações anteriores no campus, ocorridos após os ataques do Hamas a Israel".

Essencialmente, o que o autor chama de reação populista contra as instituições do establishment está na raiz do movimento MAGA e do conservadorismo "América em primeiro lugar", "juntamente com a crença de que as faculdades liberais são responsáveis ​​por propagar um sistema de crenças antiamericano".

O fato é que a difusão da ignorância, além das fake news e teorias conspiratórias, turbinadas nas redes sociais, revela a presença de um movimento fascista que ameaça a democracia. E como disse Umberto Eco no livro citado (O fascismo eterno), o fascismo é eterno enquanto durarem às condições que o tornaram possível, e daí a necessidade e importância de combatê-lo e desmascará-lo, e "apontar cada uma de suas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo".

Como afirmou Bérenguère Viennot: "É feio dizer, mas os Estados Unidos são governados por um homem que, em nossos critérios, podemos chamar pura e simplesmente de fascista".

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